sábado, 4 de junho de 2011

Academia Militar: Os amores proibidos e o guarda-nocturno empata 'coneiros'

«O regulamento não permite relacionamentos entre os alunos, mas os namoros sempre existiram e alguns até dão em casamento

Jorge perdeu a virgindade aos 21 anos num quarto alugado na Amadora e que era partilhado por oito alunos da Academia Militar (AMA), que servia para se fardarem e desfardarem antes de entrarem na escola. Rui e Elisabete conseguiram namorar em segredo durante quatro meses, até serem apanhados de mãos dadas, no metro, pelo capelão da Academia. Mariana tinha 19 anos, era a melhor aluna do curso, mas engravidou. Foi para casa nas férias de Natal e nunca mais voltou. A namorada de Renato, na sua terra, engravidou e ele escondeu que era pai durante anos para não ser expulso.

O regulamento da AM é claro sobre os relacionamentos dos alunos. Tudo o que saia do "quadro de normal convivência e sã camaradagem" é proibido. As relações podem originar, segundo as normas de vida interna da instituição, "situações perturbadoras da boa harmonia, da coesão e do bom ambiente". Além disso, prejudicam "o rendimento escolar dos alunos". Mas dentro da escola - que, apesar de ser militar, não deixa de ser uma universidade -, há rapazes e raparigas, quase homens e mulheres. "E é claro que havia relacionamentos. Passávamos o tempo quase todo fechados lá dentro, por quem mais nos podíamos interessar senão por outros alunos-cadetes?", admite Maria, ex-aluna, hoje militar. Muitos dos namoros clandestinos até dão, anos mais tarde, em casamento. Dentro das fronteiras da Academia a disciplina é férrea e um breve entrelaçar de mãos, uma troca cúmplice de olhares ou um beijo roubado num vão de escadas vazio são delitos suficientes para acabar com uma carreira militar.

Um sábado de manhã, em 2000, Elisabete perdeu o comboio para o Porto. Rui, que andava de olho nela há vários meses, arriscou tudo e convidou-a para jantar fora da Academia. Eram amigos, do mesmo curso, e já estavam no terceiro ano. Nessa noite jantaram no Saldanha, em Lisboa, e beijaram-se, sem saber como. O momento, breve, mudou tudo. "Foi estranho voltarmos a ver-nos dentro da Academia. Passámos a semana inteira a olhar um para o outro, sem perceber o que nos estava a acontecer", recorda Rui, que hoje é militar do Exército. Pouco depois começaram a namorar clandestinamente - apesar de conhecerem as regras. "A maioria não estão escritas, mas a nossa avaliação era constante e havia olhos em toda a parte, todas as posturas eram controladas", lembra.

Além da rigidez da AM, havia outro senão. Elisabete era a primeira mulher a entrar para Cavalaria e tinha todos os olhos em cima dela: "Esperava-se que tivesse um comportamento exemplar e não queríamos fazer nada que pudesse levar alguém a apontar-lhe um dedo que fosse", conta Rui. Por isso esconderam o relacionamento até dos amigos mais chegados e evitavam-se dentro dos pesados muros da escola.

Nas idas ao cinema arriscavam as mãos dadas, mas assim que chegavam à Rua Gomes Freire - onde os estudos prosseguiam a partir do terceiro ano - as mãos desprendiam-se. Até que um dia foram apanhados em flagrante: Rui e Elisabete namoravam há quatro meses quando deram de caras com o capelão da Academia no metro. Foi tão rápido que nem tiveram tempo de largar as mãos. Eles atrapalhados e o padre com um sorriso cúmplice. "Nunca contou nada a ninguém", recorda Rui. Mas com o passar do tempo as suspeitas adensaram-se. Saíam da escola sempre a horas diferentes. Mas porque é que saíam sempre nos mesmos dias? A turma de Cavalaria só tinha sete alunos. Uma noite, Rui e Elisabete chamaram os colegas ao "aquário" - uma sala de estudo espelhada - e contaram a verdade. As reacções foram diversas. Uns ficaram felizes, outros mais reticentes. "Havia o medo de que a nossa relação pudesse prejudicar a avaliação global do curso", explica o militar. Com ou sem oposição, o namoro continuou. Dormir juntos só aos fins-de-semana, normalmente na Pousada da Juventude de Sintra. Conversas mais longas só no comboio, os dois a caminho do Norte, às sextas-feiras à noite. "De certa forma, foi um namoro à moda antiga", reconhece Rui, que, no entanto, acrescenta logo depois: "Mas sou a favor daquele regime, dá-nos sentido de verdade e de responsabilidade." Rui e Elisabete, os dois militares, hoje com 31 anos, casaram em Agosto de 2007 e têm um filho com quase dois anos.

O azar de Mariana
Era a comandante de Companhia Aluna - CCA, na gíria. Na prática, a líder de todos os alunos e o elo de ligação entre eles e os oficiais. Para conseguir o lugar, teve de ser exemplar em tudo: nas notas, no comportamento, na postura. Mas no início do segundo ano Mariana caiu em tentação e apaixonou-se por um rapaz do mesmo ano. Pouca gente sabia do namoro, só o número suficiente de amigos para garantir a troca de bilhetinhos apaixonados com combinações de encontros secretos, meio em código. Aos 19 anos, Mariana perdeu a virgindade num quarto alugado a duas idosas, perto da Academia, partilhado por quase 30 pessoas. Como os alunos tinham de entrar e sair da AM fardados, precisavam de um espaço para trocar de roupa e era frequente arrendarem quartos nas imediações da escola só para isso. E para passar a noite, de vez em quando e à vez. As duas senhoras viviam praticamente desses rendimentos. "Cobravam 60 contos, já na altura", recorda Maria. Dividido por todos, dava dois contos a cada um. Foi nesse quarto da Amadora que Mariana, rebelde nos treinos físicos, mas ingénua nas coisas da vida, perdeu a virgindade, e engravidou logo.

Assim que o teste da farmácia confirmou os primeiros sintomas de gravidez, foi falar com o comandante de companhia e o capelão. Só tinha uma coisa na cabeça: acontecesse o que acontecesse, não queria ficar mal vista. Sabia que as regras ordenavam a saída imediata, mas queria sair a bem. Dois anos antes, uma aluna tinha sido apanhada pelos colegas a dormir com um rapaz numa camarata. Acusaram-na aos oficiais e todos os "camaradas" deixaram de lhe falar. A rapariga não aguentou e desistiu da escola. "Foi completamente crucificada pelos próprios colegas", recorda Maria, ex-aluna. "Na Academia há normas que não estão escritas, mas estão instituídas, são impostas, apesar de não serem assumidas em lado nenhum", acrescenta.

Mariana fez tudo para que ninguém desse por nada. Era o início de Dezembro e as férias do Natal estavam prestes a chegar. Com a ajuda das três raparigas com quem partilhava a camarata, a CCA fez as malas em segredo: sairia para sempre da Academia no último dia de aulas. Mas nada impedia o namorado de continuar os estudos. Só os militares podem perfilhar crianças, mas ele, ainda cadete, poderia sempre fazê-lo em segredo. Só que não quis: "Se ela não fica, eu também não continuo", decidiu. E foi assim que no último dia de aulas antes das férias do Natal Mariana e Rodolfo saíram juntos pelo portão de armas - com o capelão a espreitar, escondido e comovido, atrás de uma janela. Antes de virarem costas à carreira militar, fizeram continência e choraram diante da bandeira nacional. O seu filho nasceu em 2008.

Mulheres
Maria admite que actualmente o estatuto da mulher dentro da Academia já é "um pouco diferente". No entanto, há dez anos eram poucas e tiveram de ser pioneiras em tudo. Sobretudo a mudar de mentalidades. Eram chamadas, pejorativamente, MISEF - Militares do Sexo Feminino, enquanto os rapazes que fossem vistos com elas recebiam a alcunha de "coneiros" e eram praxados. "Muitos deixavam de nos falar com medo", recorda Maria. "Quando olho para trás, éramos miúdas de 20 anos que não sabiam nada da vida, mas parecíamos ter mais de 30, tal era a rigidez a que estávamos habituadas." Por serem mulheres, tinham de fazer prova de tudo e esforçar-se "muito mais" do que eles para conseguir o que quer que fosse. E havia os boatos: "Se fôssemos vistas na rua com algum militar, já tínhamos ido para a cama com ele."

Os namoricos de Maria foram construídos à base de bilhetes, escritos em código. Dentro do portão de armas, "se ele ia para a esquerda, eu ia para a direita", conta. Porque até cruzar o olhar "podia ser comprometedor". Mas esse ambiente, acha Maria, ampliava todas as emoções: "Um simples toque de cotovelo não intencional numa fila ganhava um significado extraordinário", conta.

Escondeu que era pai
Quando entrou para a Academia, em 1999, Renato não tinha namorada, mas pouco tempo depois começou a namorar com uma rapariga da sua terra, no Norte do país. A relação não era fácil por causa da distância e durante a semana havia o stresse da AM, com o tempo dividido entre treinos físicos intensos e aulas teóricas exigentes. Havia a pressão das boas notas. E havia as viagens semanais à terra. Na prática, Renato e a namorada - que era estudante universitária - só conseguiam namorar aos sábados, porque domingo era dia de vestir a farda e regressar à Amadora para, durante cinco dias seguidos, acordar às 7h. Impreterivelmente. Mesmo assim, a vida corria-lhes bem. Até um dia em que o telefone de Renato tocou: era a namorada, a contar-lhe que estava grávida: "Entrei em pânico", recorda o ex-aluno, hoje militar da GNR. Logo nesse dia, tentou inteirar-se "com muita discrição" das consequências que aquilo que lhe poderia trazer. Depressa percebeu que, se assumisse, seria convidado a sair. "Não está escrito em lado nenhum, mas foi o que me explicaram os oficiais mais antigos", diz. Havia uma saída: perfilhar em segredo e não deixar que se soubesse na Academia. Até ao fim do curso, Renato conseguiu esconder de todos - só um amigo muito chegado soube - , apesar de ter mudado radicalmente de comportamento. Nos anos seguintes, até acabar os estudos, isolou-se. Tinha de cortar com as saídas da AM. Nunca ia a jantares. O dinheiro que recebia enquanto aluno-cadete "era pouco" e tinha de chegar para as viagens ao Norte e para a filha. "Muitas vezes andava preocupado porque a criança estava doente e a distância era sempre terrível", recorda. Podia não ter perfilhado a criança, mas Renato diz que não se arrepende, mesmo tendo transgredido e mentido. "Foi por uma causa muito maior", justifica. Renato tinha 21 anos quando foi pai. Hoje a Carolina tem nove anos.

Saltar a vedação
Jorge e Liliana esbarraram um no outro no final do primeiro ano, enquanto olhavam ao mesmo tempo para a pauta de Análise Matemática. Ela passou e ele tinha chumbado. Quando a escola recomeçou, em Outubro, Liliana estava um ano mais à frente e emprestava-lhe os apontamentos. Foi entre papéis cheios de fórmulas matemáticas que surgiram as primeiras idas inocentes ao cinema. Combinavam a sessão, normalmente no Monumental, compravam os bilhetes em separado e só se encontravam já dentro da sala, no escuro, para não serem vistos. Outras vezes encontravam-se no Centro Comercial Babilónia ou no Colombo. Estavam em 1999 e deram o primeiro beijo dentro do carro dele: "Foi estranho e complicado, não sabíamos como ia ser a partir daquele dia", conta Jorge. O problema nem era tanto que os oficiais viessem a saber. Era que os "companheiros" descobrissem. "Porque o pior que podia acontecer na Academia eram os boatos." Ela ficaria mal vista, ele passaria a ser um "coneiro". Porque "gajo" a sério namorava, mas com raparigas civis, nunca com uma MISEF.

Todos os dias, a seguir ao jantar e até ao recolher obrigatório, em vez de frequentarem as zonas de convívio, Jorge e Liliana refugiavam-se nos vãos de escadas de acesso às camaratas - ele na ala masculina, ela na feminina - e falavam ao telemóvel. Dentro do mesmo edifício. Fora isso, evitavam-se. Nesse mesmo ano, os alunos tiveram um exemplo da perversidade das regras com um caso de um rapaz e uma rapariga de Medicina. Os dois vinham do ensino secundário normal e já namoravam antes de entrar para a Academia: "Sofreram bastante, especialmente ele, porque não estavam habituados àquele mundo e achavam normal estarem sentados à mesma mesa no bar", conta Jorge.

Também foi num quarto alugado para as fardas, a 15 minutos a pé da AM, e já com 21 anos, que Jorge perdeu a virgindade. O espaço era partilhado por oito alunos. "Primeiro ela pedia autorização à senhora da casa para lá dormir e depois implicava uma logística enorme, porque éramos oito e tinha de se fazer escalas para saber quem precisava de lá dormir e em que dias", recorda Jorge. Mesmo com a logística apurada, ainda aconteceu, duas ou três vezes, estarem deitados na cama, debaixo dos lençóis, e entrarem "companheiros" pelo quarto dentro para se fardarem.

Poucos sabiam que namoravam, mas uma noite quase foram apanhados. Os oficiais de dia controlavam as saídas e as entradas através de um sistema de cartões: quando um aluno saía do edifício levava o seu cartão de estudante, que voltava a pôr na recepção quando regressasse. Assim sabia-se sempre quem estava fora. Como não tinham boas notas, Jorge e Liliana tinham direito a poucas saídas. Mesmo assim havia as dispensas de jantar: podia-se sair depois das aulas e voltar às 21h30. Criou-se um esquema para chegar mais tarde: bastava pedir a um colega que entrasse a horas que depositasse o cartão dos "atrasados" na portaria. Depois era só saltar a vedação da Academia pela calada da noite. Até à uma da manhã, os portões abriam de hora a hora. Depois disso só voltavam a abrir às sete da manhã. O melhor momento para saltar a vedação era quando as portas estavam abertas "e todas as atenções viradas para o controlo das entradas e não para o resto do perímetro".

Numa noite, Jorge e Liliana estacionaram o carro ao pé da zona de salto, mas apareceu o guarda nocturno do bairro e não puderam saltar à hora da abertura dos portões, por isso tiveram de esperar mais uma hora até à nova abertura de portões. E reclinaram os bancos para não serem vistos da rua. "Sem saber bem como, deixámo-nos dormir. Aliás, na Academia deixávamo-nos dormir em todo o lado, tal era o cansaço", conta Jorge. Acordaram em pânico, já passava das três da manhã. Arriscaram tudo, saltaram a vedação de madrugada e não foram apanhados. Bastava ter havido uma ronda pelas camaratas - que era habitual - e teriam sido denunciados pelas camas por desfazer. João e Liliana escaparam nessa noite, mas a relação acabou por não continuar. Ela tornou-se militar quando ele ainda estava no tirocínio (estágio, equivalente ao quinto ano). "Vivíamos em mundos diferentes e eu estava concentrado nos estudos", resume Jorge.

Final feliz
Pedro e Catarina beijaram-se um dia, no meio da rua, em Lisboa, depois de quatro anos de "sã camaradagem". Afastaram-se no dia a seguir. "Por causa do desconforto", recorda Pedro. Ele gostava dela, mas não queria prejudicá-la. E a pressão era "enorme". As coisas foram andando assim, "esquisitíssimas", até terem uma conversa. Se gostavam um do outro, haviam de conseguir ficar juntos. Mas em segredo. "A Academia exercia uma pressão forte, que as raparigas sentiam mais. Não era bem visto que uma rapariga se envolvesse com vários rapazes e eu não queria que se soubesse até termos a certeza que ia dar certo, para ela não ficar marcada", recorda Pedro. "Se ela estivesse numa zona de convívio, mesmo com mais pessoas, eu já não entrava", admite. O que os safou foi serem bons alunos e por isso terem direito a muitas saídas. Os encontros, em "centros comerciais pouco frequentados e duvidosos", eram combinados por telemóvel. Tinham 21 anos quando começaram a namorar. Quase dez anos depois, continuam juntos. Partilham casa e carreira e "qualquer dia" querem ter um filho.»

in jornal "i" online, 04-6-2011


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