sábado, 1 de janeiro de 2011

Guardas-nocturnos. Uma profissão roubada à Cidade Invicta

«Os oito últimos da sua profissão na Invicta são uma sombra do que já foram. Homens de idade avançada que respondem perante a PSP e a câmara, mas vivem das esmolas dos comerciantes.




Meia-noite, Praça da Batalha, no Porto. João Travassos, de 72 anos, cumpre religiosamente a rotina de há 30 anos. O marceneiro reformado, natural de Arganil, Coimbra, começa mais um turno que se estende até às 5h00. Até lá vai passar por mais de uma dezena de ruas e outros tantos quilómetros entre a Batalha e o Jardim de São Lázaro e verificar que não há sinais de assaltos a lojas. Encontramos Travassos na esquadra da PSP, no Infante, voltado para a vitrina, a mirar a estátua do histórico navegador que fita a Ribeira do Porto. Travassos surge no posto de polícia trinta minutos antes da hora de tabela, mas não é polícia. Fala vezes sem conta da Câmara do Porto para a criticar, mas não é funcionário municipal. João Travassos, ou o "49" - como os colegas o conhecem - é o mais antigo dos guardas--nocturnos que subsistem na Invicta, onde ainda trabalham oito.

Travassos é, como anunciado, o número 49, algarismos que indiciam os bons tempos passados. "Há 30 anos saíamos 13 à noite só da esquadra onde agora é o Comando da PSP do Porto", diz, murmurando um lamento de ancião numa cidade velha e escura que parece não ter perdoado o fim dos colegas. "Vou então fazer como se não estivessem aqui", desafia.

O i acedeu com a curiosidade de uma criança que lê um conto de Dickens. Travassos, vestido de azul-escuro - cor de polícia - e com uma barrete enfiado na cabeça, sobe a calçada a caminho da Batalha como uma figura de ficção. O seu semblante parece saído do imaginário do museu de Madame Tussauds, mas Travassos é de carne e osso. Dá vida a uma profissão que recua a 1860, de acordo com registos históricos avançados por fontes policiais ao i.

Em 1755 chamavam-se "vigias nocturnos", nome alterado para "guarda-nocturno" em 1860. É a única profissão respeitante à segurança pública que mantém o nome ainda hoje. No Porto, ao contrário de todas as outras cidades do país, a magia do tempo faz com que a profissão se mantenha completamente inalterada e em vias de extinção.

23h00, começa o giro A noite de nevoeiro grave e frio, que inflige danos nas vértebras, acompanha Travassos, antigo marceneiro reformado. Está na altura de se apresentar na esquadra do Infante. "Meu comissário, dá licença?", interpela num ritmo onde só falta a continência. O aprumo está garantido. O ritual espoleta uma viagem a um tempo esquecido e as ruas transformam-se num museu em que Travassos é o guia. Na cabeça leva o velho barrete onde pontificam as insígnias de guarda-nocturno.

Os polícias têm-lhe carinho e o 49 segue para o turno da noite. Desde a escalada até à Batalha, onde se ergue o Teatro Nacional de São João, Travassos irrompe pelo Largo de São Domingos, passa pela Rua das Flores, pela Rua do Loureiro, pela Rua Alexandre Herculano, pela Rua Duque de Loulé, pela Praça das Flores, pela Rua Joaquim António Aguiar, pela Rua do Campinho e pela Rua Entre Paredes. O cuidado ancião, com perfil de soldadinho de chumbo, sobressai como uma marca de água a ladear os velhos lampiões do Porto, a disputar idade num quase velho postal turístico.

O 49 calca as ruas do Infante até à Batalha e lá bate o quarteirão vezes sem conta até à aurora. "O turno acaba às 5h00", explica. Travassos exerce uma profissão de ninguém no Porto. "Somos regulamentados pela PSP e pela câmara, mas não temos ordenado. Pedimos contribuições, que são mais esmolas", refere. O vigilante tem razão. A maioria dos comerciantes paga entre 2,50 e quatro euros por mês. "E temos de os ir cobrar", alerta o homem, que agora já só tem 40 clientes a pagar. Quando começou eram mais de cem. Em média ganha 200 euros para juntar à parca reforma. "Dá para os medicamentos", diz. Para cobrar, passa um recibo que de nada vale. E assim o ofício vai se mantendo. "Ninguém quer vir para aqui. Se existisse um salário fixo, talvez fosse diferente."

Uma missão Nos passos de Travassos percebe-se o carinho com que trata as ruas. "Conheço isto como a palma das minhas mãos. Era capaz de fazer isto de olhos fechados", diz o homem, que, de uma enfiada, poderia enumerar todos os estabelecimentos e proprietários que se perfilam entre a Batalha e São Lázaro. "Conheço tudo e todos", garante. O guarda-nocturno é impelido, ao segundo, a verificar se todas as portas e janelas das lojas estão bem fechadas. O mais importante é verificar que nada de suspeito ocorre dentro de portas.

"Há uns valentes anos encontrei dois ladrões quando roubavam uma loja." Fala de dois assaltantes em duas situações distintas; conseguiu detê-los. "Entrei, segurei-os e chamei o carro-patrulha. Nessa altura, há dez anos, quase, levei um louvor do comandante da PSP do Porto", clama com orgulho. "Agora não me dão nada, já quase que nem pagam para isto", fala, viciado nos seus próprios passos de décadas. "Adoro o ar livre. É bom para pôr as ideias em dia."

Travassos é um verdadeiro noctívago, um amante da noite com 72 anos que soma histórias a cada esquina. É um delicioso contador de verdades, sempre pontuadas por um sorriso.»


in jornal "i" online, 01-01-2011

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